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O desafio concreto de ser um arquiteto útil

 

Na próxima terça e quarta, dias 28 e 29, o CAU/GO realiza a 9a edição de sua Aula Magna, em Goiânia e Anápolis, com o arquiteto e urbanista Caio Santo Amore. O palestrante tem larga experiência em habitação de interesse social a partir da pesquisa e docência na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP) e do trabalho em assistência técnica realizado pela ONG Peabiru, onde atua há 20 anos.

Na entrevista abaixo, concedida por e-mail, Caio Santo Amore fala sobre formação profissional, Lei de Assistência Técnica, Minha Casa Minha Vida e sobre a precariedade versus o déficit da habitação no Brasil. “‘Enfrentar o déficit” não é o único problema e ‘produzir habitações’ em larga escala não é a única solução”, afirma. Confira!

 

Por que, como diz a professora Ermínia Maricato, “o arquiteto deve ser útil”?
Essa provocação, parece-me, tem pelo menos dois sentidos. Primeiro, existe um entendimento geral, na sociedade, de que o arquiteto é um profissional de elite e de que o sucesso de um arquiteto depende da sua capacidade de realizar uma obra “autoral”. Um cidadão médio (não me refiro nem mesmo às famílias mais pobres e mais vulneráveis) mal sabe para que serve o serviço que o arquiteto presta. O arquiteto público, apesar de ser uma categoria com presença importante na Caixa Econômica Federal ou em algumas secretarias de prefeituras e governos estaduais, por exemplo, tem pouca visibilidade para a sociedade em geral. O mesmo ocorre com os profissionais que se empenham em praticar a arquitetura e o urbanismo para as maiorias.

A outra provocação, acredito, é direcionada aos próprios arquitetos, pois nossa formação pode nos afastar frequentemente da “produção”, das condições materiais que produzem a cidade, a Arquitetura e o Urbanismo, em nome de se tolher a criatividade formal, a experimentação acadêmica. Nós podemos ser mais bem formados para enfrentar desafios concretos, como dar conta de uma infiltração, um mofo, ou qualquer outra patologia da construção; como viabilizar empreendimentos financeiramente; como dialogar com os “clientes”, individual ou coletivamente, para compreender suas necessidades e não inventá-las; como conhecer materiais e processos construtivos, sua adequação à mão de obra que vai executar o edifício.

 

A Lei de Assistência Técnica (11.888), aprovada em 2008, até hoje só existe na teoria. Qual é sua importância e qual é a dificuldade para que seja colocada em prática?
A lei federal foi fruto de muito empenho da categoria profissional. Porém, está ao lado de tantas outras (Estatuto da Cidade, Planos Diretores, Planos de Habitação de Interesse Social) que fizeram com que acreditássemos que a lei era um fim em si mesma. Não é! Eu penso que devemos parar de repetir que “basta implementar a lei”! Não é isso! Devemos reconhecer a conquista, os seus limites e avançar. A lei “é boa” e suficientemente genérica para abarcar práticas diversas, que se adequem a diferentes realidades: prestação de serviços por autônomos, funcionários públicos, membros de ONGs, extensão universitária e residência profissional, mutirão, participação de associações populares… E por ser genérica, não se trata “apenas” de “implementar a lei”.

A lei estava também construída como uma parte do Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social, como um meio para utilização dos recursos do Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social. É um sistema que tem planejamento, controle social e fundos associados, e que foi deixado de lado pela solução única de produção habitacional que o Minha Casa Minha Vida nos relegou. O MCMV, ao colocar terreno, construção e urbanização dentro de um mesmo pacote, faz com que o “projeto” desapareça do processo produtivo – enquanto momento para se testarem hipóteses de intervenção, para se dialogar com a sociedade e com futuros usuários, e até para se planejar o canteiro e a qualidade da construção. O “projeto”, nos processos atuais do MCMV, segue exclusivamente os ditames da produção, sem espaço para o contraditório, para o diálogo e para soluções diferenciadas e específicas. Tudo o que a (lei da) Assistência Técnica tem como pretensão.

 

Pode contar um pouco sobre a atuação de arquitetos na elaboração e articulação pela aprovação da Lei de Assistência Técnica?
O primeiro projeto de lei foi apresentado pelo deputado federal Clovis Ingelfritz, do Rio Grande do Sul. Ele tinha sido vereador em Porto Alegre e, ainda nos anos 1970, tinha participado da elaboração do ATME (Assistência Técnica a Moradia Econômica). Esse Projeto foi assumido pelo Deputado Zezéu Ribeiro, da Bahia e, nos meados da década de 2000 contou com o apoio das entidades profissionais, principalmente FNA e CREA (antes da existência do CAU, e com a participação de engenheiros na articulação). Os argumentos eram sempre da arquitetura (e engenharia) pública e os oito artigos (como coloquei acima) procuraram abarcar práticas existentes e vincular-se ao direito constitucional à moradia e à previsão da assistência técnica que existe no Estatuto da Cidade.

 

Além de promover a qualificação das habitações para populações de baixa renda, a assistência técnica também oferece um grande mercado para o arquiteto e urbanista. O próprio profissional pode se articular para aproveitar esse potencial. Por onde ele pode começar, na sua opinião?
De novo, volto a parte das respostas anteriores. O “mercado” é consequência. O que existe hoje não é mercado, já que as pessoas que “demandariam” (ou que teriam disposição a pagar por) esse serviço não reconhecem a sua utilidade ou não podem pagar (ou ambos ao mesmo tempo). Há obviamente uma camada da população com renda entre três e seis salários mínimos que poderia pagar pelo serviço, que poderia ter um subsídio inversamente proporcional à renda… Mas, para mim, não deveríamos sequer chamar esse campo de assistência técnica. A assistência técnica tem um público que são as famílias mais pobres, e, por ser pública e gratuita, está diretamente associada a um debate sobre direito (à moradia digna, à cidade) e políticas públicas. Há um arcabouço jurídico que foi construído em torno disso e misturar as estações pode significar que recursos públicos sejam drenados para uma população que não é prioritária, ainda que possam precisar do serviço do arquiteto e urbanista.

Então, eu respondo com outra pergunta: por onde o profissional pode começar se quiser fazer projeto de hospital, de centro cultural, de casas de veraneio, reformas? Provavelmente esse profissional terá que reconhecer esse campo, se especializar, estudar, participar de redes, estabelecer contatos e pensar como pode ser “útil”. Não é muito diferente, se esse profissional colocar o campo da assistência técnica em perspectiva. Outros campos de trabalho também requerem articulações das entidades para incidirem e influenciarem as políticas públicas.

 

A precariedade das habitações (domicílios sem banheiro ou com carência de infraestrutura, por exemplo) é maior do que o déficit habitacional, em todos os Estados brasileiros com exceção de São Paulo. Em Goiás, os dados expostos no seu artigo “Assessoria e assistência técnica: arquitetura e comunidade na política pública de habitação de interesse social” demonstram que há cerca de 800 mil habitações precárias, e o volume do déficit é de 200 mil unidades. De que forma essas informações devem ser levadas em conta, ao se pensar a produção de moradias no Brasil?
Essa comparação entre déficit e inadequação é muito importante para demonstrar que “enfrentar o déficit” não é o único problema e que “produzir habitações” em larga escala não é a única solução. Porque o conceito de “déficit”, trabalhado pela Fundação João Pinheiro, é justamente necessidade de reposição de estoque de habitações. Governos das mais diferentes cores, movimentos sociais e setores empresariais são frequentemente uníssonos em afirmar que “é preciso enfrentar o déficit”, para justificar que os recursos para habitação sejam aplicados quase que exclusivamente em “produção”. Esses dados ajudam a mostrar que não. Por exemplo, segundo dados da PNAD de 2015 (IBGE) para o Brasil, quase metade do déficit de seis milhões de unidades faz parte do componente “ônus excessivo com aluguel” (três milhões de domicílios). Ora, ônus com aluguel é, na prática, um descompasso entre renda e custo do aluguel e não necessariamente implica na necessidade de se produzir uma nova moradia.

Devemos levar em conta que a produção em escala, particularmente nas regiões metropolitanas e nas grandes cidades, é a autoconstrução: não há produção de mercado e não há produção pública que chegue perto dessa produção “formiguinha”. Se invertermos a lógica do déficit como problema e da provisão como solução única, chegaremos às urbanizações de assentamentos precários e às melhorias habitacionais. Para enfrentar esses desafios, vai faltar arquiteto e urbanista capacitado a reconhecer a diversidade e propor soluções individuais e coletivas adequadas.

 

Como “convencer” as instituições de ensino a de fato incorporarem a habitação em sua grade, seja na teoria, seja na prática?
Eu vejo que os estudantes de arquitetura e urbanismo já percebem as fragilidades de sua formação diante da realidade urbana brasileira. Podem até desejar (ainda) se tornarem arquitetos “de sucesso”, e realizarem obras de arte, autorais, mas reconhecem cada vez mais que essa prática será restrita a pouquíssimos profissionais. As revistas e sites especializados devem contribuir para ampliar esse debate, as entidades profissionais, em diálogo com o Ministério da Educação, também teriam condições de impor conteúdos. E não podemos nos restringir às Instituições Públicas de Ensino. É óbvio que deve haver um “compromisso social” do estudante de escola pública de arquitetura. Mas esse é um compromisso de toda a sociedade. Não é que na escola privada deva-se ensinar a fazer shopping centers e na pública a fazer habitação de interesse social. A dimensão pública da arquitetura e do urbanismo, a vinculação com o processo produtivo, é um assunto do nosso campo profissional.

 

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