Na opinião da professora Lúcia Moraes, os maiores problemas relacionados à habitação social em Goiânia e outras cidades são a distância dos loteamentos em relação ao Centro da capital e a precariedade dos bairros periféricos, além da má qualidade das edificações. Trata-se, segundo a arquiteta, de um urbanismo excludente.
A acadêmica acompanha a questão de perto desde os anos 1980, quando foi assessora técnica do Movimento Nacional de Luta pela Moradia e coordenou o Programa de Habitação Popular da Universidade Católica de Goiás, atual PUC, onde ainda leciona. Atualmente, além disso, é professora na Arquitetura e Urbanismo da UniEvangélica, em Anápolis. Entre 2005 e 2009, Lúcia também foi relatora nacional para o Direito à Cidade da Plataforma DHESC (Direitos Humanos, Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais), e monitorou conjuntos habitacionais em todo o país. Nos anos 1990, foi pesquisadora do Laboratório de Habitação e Assentamentos Humanos da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), onde fez seu doutorado.
Goiás tem hoje 2.010 arquitetas e urbanistas registradas no Conselho, em um universo de 3.054 profissionais. No Dia Internacional da Mulher, o CAU/GO homenageia as integrantes desses 65% do mercado profissional com a entrevista a seguir e integra o tributo do CAU/BR a todas as mulheres arquitetas do país.
Todos têm direito à Arquitetura?
Sim, ela deve ser acessível a todos, desde a população de baixa renda até a mais elitizada. Nós, profissionais, precisamos trabalhar mais com a população de classe média baixa e baixa renda. E colocar nossa criatividade nos conjuntos e unidades habitacionais e de interesse social.
O que de mais importante a Arquitetura pode oferecer às pessoas?
Um bom projeto, com boa ambientação, e um espaço urbano com qualidade de vida. Às vezes, nós criticamos uma habitação como “pobre”. Isso porque a habitação não é só a disposição de quatro paredes e um telhado. Ela tem que ter criatividade, volumetria, compor uma unidade no bairro, tem que ter um entorno que proporcione uma qualidade de vida à população que mora ali.
O que é a cidade nos dias de hoje?
Infelizmente, hoje nossas cidades são muito espraiadas e têm uma grande periferia, que abriga a população de baixa renda. No caso de Goiânia, Palmas, Brasília e outras cidades, vemos que o que foi planejado foi seu centro urbano. As áreas periféricas, não. A especulação imobiliária vê o vazio urbano como um potencial de capital. Por isso os especuladores estocam terras urbanas e constroem nas áreas periféricas. Vamos criando um vazio urbano entre conjuntos habitacionais, distante dos centros dotados de todos os equipamentos urbanos, e um vazio urbano que margeia toda essa área urbanizada. É um modelo de urbanismo excludente.
Qual é sua opinião sobre o argumento dos empreendedores, de que fica caro construir nas áreas centrais?
É uma estratégia das incorporadoras dizer que não podem construir habitação de baixa renda na franja urbanizada, e sim mais distante. Mas verificamos, quando se constrói os conjuntos habitacionais mais distantes, que o vazio urbano se valoriza. O Estado é obrigado a levar infraestrutura para aquele lugar, assim como equipamentos comunitários e transporte coletivo. Sabemos a precariedade do transporte coletivo nas grandes cidades. Temos que ver o que significa esse gasto. O próprio governo fala que não pode comprar uma terra próxima do Centro. Além disso, ele compra a terra a preço de mercado, sendo que poderia desapropriá-la sob a justificativa do interesse social. Dentro do Programa Minha Casa Minha Vida, existe a linha para Entidades, que possibilita construções tocadas pelas associações e movimentos de moradia. Esses conjuntos são melhores e mais baratos do que os construídos por empreiteiras. São os próprios interessados que administram as obras, com uma equipe técnica acompanhando, desde o arquiteto ao assistente social. Como os movimentos se deparam com o alto valor da terra, também acabam construindo nas áreas periféricas. O programa, infelizmente, está suspenso no momento.
O IPTU progressivo está previsto na nossa legislação, mas nunca foi implantado. Ele seria mesmo um instrumento importante para evitar a expansão urbana desordenada?
Acontece, na realidade, o contrário do que deveria acontecer. Em São Paulo, Belo Horizonte e Rio de Janeiro, o proprietário de grandes edifícios abandonados fica 10 ou 20 anos sem pagar nada de IPTU. Se um grupo de sem teto ocupa aquele prédio, no outro dia o proprietário pede reintegração de posse. Em Goiânia, temos o caso do setor Parque Oeste Industrial (ocorrido em fevereiro de 2005). A área estava loteada e estocada há 50 anos, vazia e sem pagar IPTU. No dia seguinte à ocupação das famílias, entraram com pedido de reintegração de posse. Foi um dos despejos mais violentos registrados no Brasil.
Como a Lei de Assistência Técnica (Lei 11.888/2008) pode contribuir para a construção das habitações da população de baixa renda?
Em São Paulo, temos um registro satisfatório da aplicação da lei e de escritórios que prestam assessoria técnica aos movimentos e associações por moradias. Com esse grande número de arquitetos se formando hoje no Brasil, esse campo deve avançar bastante. A população de menor poder aquisitivo também precisa do arquiteto.
Uma pesquisa realizada pelo CAU/BR em 2015 revelou que 90% das pessoas que já construíram, na região Centro-Oeste, não contrataram um responsável técnico para o serviço.
Isso, e assim a edificação pode gastar muito mais material do que o necessário. Ou poderá ficar muito precária, ter trincas ou desabar.
No geral a qualidade das habitações de programas como o MCMV é ruim?
A grande maioria das edificações e dos conjuntos habitacionais é de má qualidade. Mas eu sou muito favorável ao MCMV, pelo grande número de unidades construídas.
Três milhões?
Sim. É um número significativo e moveu toda a indústria da construção civil. Na época em que o programa foi lançado, foi mais para atender a reivindicações dos empresários do que realmente a necessidade de habitações de interesse social.
Atualmente, quais são os números do déficit habitacional em Goiás?
Não considero que o número de Goiás ou Goiânia seja muito grande, acredito que não chegue a 50 mil unidades. Temos poucas áreas de risco ou favelas. O que temos são áreas precárias que precisam ser urbanizadas.
Podemos dizer que em Goiânia os maiores problemas relacionados à habitação social são seu distanciamento do Centro e a precariedade do bairro?
Sim, e das unidades habitacionais. Está sendo criado um grande bolsão de pobreza na região Noroeste da capital, onde fica o Jardim Curitiba, na saída para Inhumas. Se criou um bolsão no Jardim Cerrado. Na região Sudoeste também temos uma grande população de baixa renda, onde foram assentadas as famílias do Jardim Conquista. E agora isso está começando também na região Norte, com a construção do Orlando de Morais e do Antônio Carlos Pires. A periferia vai sendo ampliada. Se pelo menos houvesse equipamentos comunitários. Mas não há. Até hoje, há crianças que saem do Jardim do Cerrado, que existe desde 2005, para estudar no Vera Cruz.
Como a política habitacional evoluiu no Brasil, nos últimos anos?
Não temos uma política habitacional consolidada. Temos programas habitacionais. A política envolve desde a questão da terra à questão da unidade habitacional e os equipamentos. Não é só construir casas para constituir uma política habitacional.
O que as escolas de Arquitetura e Urbanismo têm ensinado sobre habitação e o que podem melhorar?
Para mim, a habitação deveria ser o carro-chefe na escola de Arquitetura. Não só a social. Ha-bi-ta-ção. 90% das edificações em uma cidade são habitacionais. Vai da casinha pequena ao grande condomínio de apartamentos. Todo arquiteto faz um projeto habitacional. Mas infelizmente vemos apenas um ano de disciplina de habitação. Precisamos incentivar nossos alunos a discutir e se interessar pelos projetos habitacionais.