Nesta quarta-feira, 24, o CAU/GO realiza a primeira Aula Magna do ano, com o arquiteto e urbanista Humberto Kzure-Cerquera. Com vasto currículo, que inclui três pós-doutorados e passagem pela Bauhaus Universitat Weimar e Universidade do Porto, o professor da UFRRJ também é mestre em Planejamento Urbano e Regional pelo IPPUR/UFRJ e doutor em Urbanismo pela FAU/UFRJ (clique aqui para mais informações sobre o palestrante).
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Na sua trajetória, Humberto Kzure também já atuou em Goiânia, como Diretor de Projetos da Agehab. “Foi um dos trabalhos mais enriquecedores da minha carreira, nesses mais de 30 anos”, afirma. Para ele, o arquiteto tem o “dever cívico” de trazer soluções que melhorem a vida das pessoas. “Nossa profissão não é para o glamour. É para atender às necessidades, às demandas dos espaços urbanos”.
Confira a seguir a entrevista completa:
Você esteve à frente da Direção de Projetos da Agehab, em 2009. Como foi essa experiência?
Essa foi a segunda vez que tive a oportunidade de trabalhar em Goiânia, uma cidade que eu admiro profundamente. Pensei que viveria todo a minha vida em Goiânia, mas infelizmente a minha carreira acadêmica e outros projetos me levaram para outros caminhos. A princípio, eu faria uma consultoria de um mês e acabei por ficar quase um ano na Agehab. Na época, contei com a participação importante de duas arquitetas brilhantes goianas, Lorena sulino e Carolina Borges. Havia outras pessoas na equipe, mas elas davam sustentação àqueles projetos, desde os projetos arquitetônicos e as maneiras como deveriam ser implementados, até a sua viabilização para cada município do Estado de Goiás. Nós viajamos por várias cidades. Desenvolvemos projetos que tinham uma relação direta com as atividades produtivas da construção civil para cada lugar, inclusive na área rural, com a valorização do indivíduo e a possibilidade de ampliação das edificações. Desenvolvíamos o projeto executivo completo, de tal maneira que desenhávamos dentro do lote as possibilidades de ampliação para os futuros proprietários. Foi um trabalho muito intenso, um dos mais enriquecedores da minha carreira, nesses mais de 30 anos.
Há muito se fala na necessária reocupação dos centros da cidade. Da sua perspectiva e da sua experiência, qual é a dimensão da importância da retomada desse espaço, para as cidades e para seus cidadãos?
É um problema de natureza cultural. Alguns representantes políticos e os setores imobiliários têm a visão de que as cidades devem ter ocupação avolumada em toda a sua extensão. É um grande equívoco porque gera problemas de mobilidade e de desgaste para o trabalhador. Com isso, aumentam as distâncias e o custo da infraestrutura, fora outros agravos ambientais que nós assistimos nas cidades brasileiras, que vão crescendo de maneira absolutamente desordenada, para atender especificamente aos interesse daqueles que querem reproduzir o seu capital – o que poderia ser feito de outra maneira, se a mentalidade fosse outra. Por exemplo, de recuperar as áreas centrais. As áreas centrais têm infraestrutura implantada, que funciona em um período de tempo relativamente curto e, portanto, fica obsoleta nas horas em que a cidade dorme. Deveríamos, na verdade, trazer a moradia (para o Centro). E não apenas para a classe de menor poder aquisitivo. Nós poderíamos ter ali a presença maciça de uma multiplicidade de pessoas, de famílias e de rendas que pudessem dinamizar o espaço.
A mobilidade é uma questão central do planejamento urbano e um problema urgente da Região Metropolitana de Goiânia, no momento. Pode nos dizer como é possível levar as pessoas de um ponto a outro da cidade, de forma eficiente, segura e confortável?
Há mais de 20 anos, eu estava trabalhando em uma consultoria e dizia “a partir de agora nós não podemos mais falar em planejamento, sem falar em mobilidade”. Isso talvez não tenha sido devidamente compreendido, porque as nossas cidades estão crescendo vertiginosamente. O espraiamento amplia as distâncias, cria bolsões de pobreza, cria o deslocamento dos trabalhadores. Aliado à mobilidade, a gente precisa discutir as questões ambiental e econômica. Se por um lado precisamos atender à demanda dos usuários, por outro é preciso trabalhar com tarifas viáveis e um tipo de modal que diminua a emissão de particulados na atmosfera, como o dióxido de carbono. A discussão do transporte precisa ser assumida pelo poder público, que tem que ser o gestor. Não pode ser um despachante dos interesses do capital privado. O planejamento precisa ser gerido pelo Estado com a participação da população. Cabe às empresas serem executoras daquilo que é demandado pelas cidades.
Eu acho que esse é o momento de revisão de tudo. Espero que na próxima etapa, pós-pandemia, a Arquitetura seja projetada em outras bases. Sobretudo a Arquitetura para habitação de interesse social. Que o Urbanismo seja projetado em outras bases. Que a construção de equipamentos de uso coletivo, como escolas, creches e unidades de saúde – tudo aquilo que possibilita a convergência de pessoas – seja pensada numa perspectiva da saúde, social, cultural, ambiental e econômica. A mobilidade também tem que ser pensada em outra dimensão, mais autônoma, com os percursos pedonais e cicloviários. Quer dizer, alternativas possíveis para que nós não tenhamos esse déficit tão expressivo de transporte público e, ao mesmo tempo, ampliemos cada vez mais a frota de automóveis individuais nas nossas cidades. Eu acho que a gente está no momento de reconstruir uma espécie de urbanismo mais afetivo. Para construí-lo, não devemos romantizá-lo, mas sim torná-lo de fato um espaço onde as pessoas possam conviver com segurança em todos os níveis.
Pode contar um pouco sobre as linhas gerais do que veremos na Aula Magna?
Quando recebi o convite, fiquei muito surpreso e preocupado, porque é uma responsabilidade grande falar para jovens e para colegas, profissionais de Arquitetura. Mas o que eu pretendo é estabelecer um diálogo e uma possibilidade de ampliarmos o debate sobre o espaço que há muito pouco tempo vem sendo visto com mais interesse por parte dos arquitetos e urbanistas. Evidentemente, sempre houve profissionais preocupados, escrevendo, conceituando e diagnosticando a cidade como um todo. Mas a gente precisa ampliar a dimensão do que é ser arquiteto. Entender quais são os fenômenos urbanos que estão a nossa volta, para produzir uma Arquitetura, um Urbanismo e um Paisagismo de qualidade. Eu sou um arquiteto que não acredita que a nossa profissão é para o glamour. Nossa profissão é para atender às necessidades, às demandas dos espaços urbanos onde vivemos e convivemos. Eu acho que nós seremos capazes de buscar, a partir dessa discussão que agora vem surgindo com mais fôlego nas instituições de arquitetura e urbanismo, como o próprio CAU, como a União Internacional dos Arquitetos, e tantas outras. Devemos trazer para a nossa profissão o sentido de Estado. Nós temos o dever cívico de intervir como um profissional do Estado, que seja capaz de trazer soluções que melhorem a vida das pessoas.