Ao permitir que os assentamos urbanos sejam regularizados sem intervenções urbanísticas e infraestrutura, a MP 759/2016 “cria bairros papel”, pois bastará a entrega do título de posse para inserir a gleba ocupada no sistema formal da cidade. Foi o que afirmou o presidente do CAU/BR, Haroldo Pinheiro, durante audiência pública promovida em 06/04/17 pela Comissão Mista do Congresso que analisa a Medida Provisória que o governo editou às vésperas do Natal do ano passado objetivando a regularização fundiária urbana, entre outros temas.
Segundo o presidente do Conselho, a MP 759 contraria o Estatuto da Cidade e legislações decorrentes que preveem quatro fases para a regularização de uma gleba urbana: demarcação, projeto de urbanização e licenciamento, registro do projeto e do auto de demarcação e titulação por legitimação de posse. “A MP pula as três etapas iniciais e permite a titulação imediata como se papéis, os títulos, pudessem substituir ruas asfaltadas, eliminação de áreas de risco, luz, saneamento e outros equipamentos públicos que, de fato, incluiriam o assentamento na parte formal da cidade”.
“A regularização fundiária não é disciplina de direito imobiliário, mas de direito urbanístico. Seu objetivo não é produzir propriedade, mas gerar cidades”, afirmou o presidente do CAU/BR ao entregar aos parlamentares manifesto sobre a 759/2016 aprovado por unanimidade no V Seminário Legislativo de Arquitetura e Urbanismo que o CAU/BR promoveu em março, também referendado pelas demais entidades do setor.
A esse propósito, Haroldo Pinheiro lembrou que na justificativa da MP 759 o governo diz que a regularização fundiária urbana contribuirá para “o aumento do patrimônio imobiliário do País”, por representar a inserção de capital na economia, à medida que agrega valor aos imóveis regularizados, permite ao Poder Público cobrar impostos (IPTU, ITR E ITBI) e facilita aos proprietários a obtenção de créditos, dando seus imóveis como garantia. “Ou seja, a inclusão apressada das áreas regularizadas no “mercado imobiliário” mostra que o fator econômico, não o social, foi determinante para deixar a urbanização em segundo plano”, disse o presidente do CAU/BR.
Haroldo Pinheiro afirmou também que “a MP desconsidera a evolução histórica da legislação federal de política urbana e especialmente da regularização fundiária do país”, com Estatuto da Cidade e o capítulo III da Lei 11.977/09. Esse capítulo prevê, por exemplo, que a regularização de uma área de interesse social implica que, além da malha viária, a gleba deva ter no mínimo dois dos seguintes equipamentos de infraestrutura urbana: drenagem de águas pluviais, esgotamento sanitário, abastecimento de água potável, distribuição de energia elétrica ou limpeza urbana, coleta e manejo de resíduos sólidos. O capítulo também prevê a figura as características de uma demarcação urbanística, que a MP 759/106 extingue.
Outro aspecto abordado pelo presidente do CAU/BR foi a falta de previsão de assistência técnica nos casos em que se aplicaria o instrumento do “direito de laje”, que permite, por exemplo, o registro como unidade imobiliária autônoma de moradia construida na laje de imóvel de terceiro. A medida pode inclusive incentivar e ampliar o número de moradias inseguras e insalubres.
Conforme o manifesto entregue à Comissão Mista da MP 759/2016 que os processos desencadeados por ela “não contribuem para a efetiva implementação da Nova Agenda Urbana de forma a tornar as cidades e os assentamentos humanos mais inclusivos, seguros, resilientes e sustentáveis”. A Nova Agenda foi recém definida pelas Nações Unidas na conferência Habitat III e do qual o Brasil foi um dos signatários.
Haroldo Pinheiro reconheceu que a MP 759/2016 trata de assuntos de vital importância, e que o aprimoramento de legislações é natural, mas correto seria o governo propor um projeto de lei a respeito, para possibilitar “em um tempo adequado” uma maior participação da sociedade nos debates. “Inclusive do Conselho das Cidades, onde estão representados todos os movimentos sociais, as entidades empresariais, a academia e as instituições de classe, mas que não se reúne há um ano por falta de convocação pelo Ministério das Cidades”.
Repúdio
O subchefe de assuntos jurídicos da Casa Civil da Presidência da República, Erick Vidigal, outro participante da audiência pública, afirmou que não é verdade que não houve diálogo prévio à edição da MP, pois teriam sido ouvidos órgãos da Justiça e do governo.
Ele disse também que seria uma “inversão de valores ouvir Conselhos, sindicatos e entidades que têm pautas profissionais, pois os verdadeiros legitimados são os cidadãos a serem beneficiados pela MP”. E continuou: “Não podemos nos subordinar a ideologia de entidades de classe cujo interesse é preservar seu espaço e defender reserva de mercado”.
Por fim, arrematou: “aos que se sentirem prejudicados sempre haverá o caminho de se recorrer ao Supremo Tribunal Federal”.
Em resposta, Haroldo Pinheiro disse que a manifestação dos arquitetos e urbanistas nada tem a ver com ideologia ou reserva de mercado, lembrando a contribuição histórica da categoria pela melhoria das cidades, inclusive colaborando com a elaboração de legislações como o Estatuto da Cidade, a Lei de Assistência Técnica para Habitação de Interesse Social, o Estatuto da Metrópole e outras.
“O que nós estamos discutindo aqui é a construção de cidades dignas. Não devemos confundir esse objetivo maior e generoso com questões menores, o que repudio com veemência”.
Inconstitucionalidade
Diversos aspectos que caracterizariam a inconstitucionalidade da MP 759/2016 foram levantados na audiência por Daniela Campos Libório, do Instituto Brasileiro de Direito Urbano (IBDU), e Nelson Saule Júnior, do Instituto Pólis.
A advogada afirmou que legitimação fundiária de bens imóveis públicos e privados por ato discricionário dos gestores públicos significa “rasgar a Constituição”. A propriedade privada, lembrou, é garantida constitucionalmente e apenas com desapropriação o poder público poderia fazer mexer com ela. Sobre esse tema, o deputado Afonso Florence (PT-BA) disse que o governo está sendo “mais comunista que a oposição”.
O representante do Pólis chamou a atenção para o fato da MP atribuir ao aos Municípios direito de legalizar terras rurais, o que é competência da União, ao mesmo tempo em que tira deles atribuições de política urbana que passariam a depender de decreto federal. “É uma lesão ao pacto federativo”.
O deputado Edmilson Rodrigues (PSOL-PA) também manifestou-se contra a 759/2016 por permitir a regularização de terras griladas e terrenos de marinha invadidos. “O que predomina na MP é o direito individual de propriedade e não o direito social como previsto em nossa Constituição”.
A diretora da Associação dos Notários e Registradores do Brasil, Patrícia André de Camargo Ferraz, criticou o fato de conteúdos da atividade de qualificação de registro e de atribuição de segurança jurídica terem sido retirados dos registros de imóveis e passados para o poder público. Naila de Rezende Khuri, diretora do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil, defendeu a MP, em especial a possibilidade de ampliação do mercado imobiliário legal. “Com isso, a pessoa vai ao banco e pode obter financiamento, o que faz a economia crescer. Uma economia baseada em créditos fracos só aumenta juros”.
Consequências imprevisíveis
Em seu pronunciamento, o presidente do CAU/BR, Haroldo Pinheiro, disse também que “o que mais assusta é que a MP está em vigor, pois tem valor de lei, e não se sabe os desdobramentos que isso está gerando pelas consequências dos atos que estão sendo gerados sob seu manto”.
A respeito, Sílvio Eduardo Marques Figueiredo, do Ministério das Cidades, informou que em razão da 759/2017, a Prefeitura de São Paulo conseguirá regularizar mais de 80 mil unidades. Nelson Saule Júnior, contudo, afirmou que por causa da MP diversos programas de regularização fundiária urbana do Estado de São Paulo foram interrompidos, “pois a MP gerou insegurança para os gestores sobre a possibilidade de implementarem os programas na forma como eles caminhavam”.
Fonte: CAU/BR