Inconstitucional, editada sem debate público, contraditória com o Estatuto da Cidade, discricionária e desrespeitosa aos projetos urbanísticos. Essas são apenas algumas das críticas feitas à MP 759/2016 editada pelo governo federal em 22 de dezembro de 2016, ora em tramitação no Congresso, dispondo sobre um novo regime para a regularização fundiária urbana.
As entidades de Arquitetura e Urbanismo se posicionaram contra a falta de debate prévio com a sociedade e a edição da proposta por Medida Provisória, em vez de projeto de lei, o que paralisa todo processo da regularização fundiária em andamento no país há anos. Clique aqui para conhecer a íntegra da manifestação.
Outras entidades igualmente têm feito severas críticas ao conteúdo da MP, entre elas o IBDU (Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico) e o Instituto Pólis. Se a 759/2016 vingar, dizem, seriam necessários de cinco a dez anos para adaptação e acomodação das legislações municipais e normas de serviços dos tribunais.
Veja a seguir os 10 pontos mais polêmicos da MP 759/2016:
MUDANÇA GERAL – Segundo o governo, a MP 759/2016 se justifica “em razão da vigência de diversas normas de hierarquia diferentes versando sobre a regularização fundiária, algumas delas de maneira contraditória sobre a mesma política, o cumprimento adequado do comando constitucional pertinente vem sendo cada vez mais mitigado, situação essa que levou o próprio Tribunal de Contas da União a determinar a suspensão liminar de alguns desses atos, inviabilizando o processo de titulações”
Para os críticos, no entanto, a MP 759/2016 representa um retrocesso em relação à legislação vigente por desmontar um arcabouço urbanístico e jurídico, fruto de um amplo processo de discussão por mais de 20 anos, com participação da sociedade, e já incorporado pelos Municípios, pelos cartórios e por provimentos da Corregedoria Geral do Tribunal de Justiça de São Paulo e do Conselho Nacional de Justiça sobre regulamentação fundiária urbana.
“Todo esse sistema legislativo complexo passará a ser regulado por decreto federal, inclusive em matérias que não são de competência da União, que deve apenas dispor sobre normas gerais de Direito Urbanístico. Ou seja, entre outros aspectos, há uma invasão da competência municipal, obrigando ajustes nas legislações urbanísticas, como Planos Diretores e Leis de Uso e Ocupação do Solo, das cidades de todo país”, afirma Rosane Tierno, advogada especialista em regularização fundiária, ligada ao IBDU.
A MP 759/2016, no que diz respeito à regularização fundiária urbana, modifica nove leis: 6.015/1973 (Registro de Imóveis), 8.666/1993 (Licitações), 9.636/1998 (Administração do Patrimônio da União), MP 2.220/2011 (Concessão Especial para fins de moradia), 11.977/2009 (Minha Casa Minha Vida), 12.651/2012 (Código Florestal), 13.240/2015 (Alienação de imóveis da União), 13.139/2015 (Parcelamento de Dívidas com a União) e Decreto-Lei 2.398/1987. E ainda contradiz o Estatuto da Cidade (10.257/2001) e a Lei do Parcelamento do Uso do Solo Urbano (6.766/1969).
Nesse contexto, a MP criaria um vácuo legislativo e compromete a continuidade de várias iniciativas que estão em curso em todo o país, em especial no atendimento à população de baixa renda.
POR QUE AGORA E A PRESSA? – Segundo o governo, a relevância do tema e sua urgência justificam a proposta de um novo marco para a regularização fundiária (a MP trata também da área rural) por meio de uma Medida Provisória.
Os críticos discordam da justificativa e alegam, em razão disso, a inconstitucionalidade da 759/2016. “Além disso, é inadmissível que regimes jurídicos sobre regularização fundiária, reforma agrária e sobre imóveis da União, este último em especial constituído desde o Século XIX com a Lei de Terras de 1850, possam ser modificadas por meio de medida provisória sob o pretexto de relevância e urgência. Seria um caos jurídico”, diz o advogado Nelson Saule Júnior, do Instituto Pólis, que tem presença ativa nas discussões sobre o Direito à Cidade.
ASSENTAMENTOS X NÚCLEO URBANO INFORMAL – A MP 759/2016 cria o instituto do “núcleo urbano informal”, caracterizado como “adensamento populacional passível de regularização fundiária urbana (REURB)”. Compreende situações de ocupação ordenada, desordenada, clandestina, irregular, que tenham sido implantadas sem observância da legislação (caso típico dos loteamentos, condomínios e incorporações ilegais). O conceito engloba também imóveis situados na zona rural que possuam ocupação e destinação urbanas.
Para os críticos da MP, não existe razão prática para substituição das definições internacionais que utilizam a nomenclatura “assentamentos informais” ou “assentamentos irregulares”. Conforme manifestação das entidades de Arquitetura e Urbanismo nesse e em outros aspectos “a MP não dialoga com o importante aprendizado do conjunto de experiências recentes da reforma fundiária, especialmente a operacionalização pelos Municípios da Lei 11.977. Essa operacionalização vinha acontecendo à custa de muito investimento público em formação e capacitação técnica e na elaboração dos planos de regularização”.
TIPOS DE REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA (REURB) – A MP 759/2016 revoga o conceito de regularização fundiária estabelecido pela Lei 11.977/2009 sem substitui-lo. O conceito é o seguinte: “A regularização fundiária consiste no conjunto de medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais que viam à regularização de assentamos irregulares e à titulação de seus ocupantes, de modo a garantir o direito social à moradia, o pleno desenvolvimento das funções sociais da propriedade urbana e o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado”.
Mesmo assim, a MP cria duas modalidades de regularização fundiária urbana:
REURB de interesse social (Reurb-S), aplicável a núcleos urbanos informais ocupados predominantemente por população de baixa renda;
REURB de interesse específico – (REURB-E), aplicável a núcleos urbanos informais ocupados por população “não qualificada” como de baixa renda.
Para os críticos, a MP 759/2016 subtrai os aspectos sociais da matéria, ao impor novas exigências para a legitimação fundiária em áreas ocupadas informalmente por população de baixa renda e ao flexibilizar a regularização de loteamentos e condomínios fechados de alto padrão, inclusive em áreas de preservação ambiental. Para a população de baixa renda exige-se que não seja proprietário de outra área, por exemplo, e para a de alta renda não. “O governo fala que as áreas para alta renda serão vendidas. Imagina, então, a situação de Brasília, no caso dos diversos condomínios de população de alta e média renda que são terrenos grilados: o governo do DF vai legitimar e vender as terras de terceiros”, diz Rosane Tierno.
Ela continua: “No caso das áreas de baixa renda existem uma série de critérios que precisam ser observados. Imagine que dentro do perímetro delimitado existam pessoas que não obedecem ao critério da legislação, como tem outro imóvel, ou uma renda superior àquela que vai ser declarada como limite. Como fica essa história? A gente vai ter uma planta de regularização igual a um queijo suíço? Isso não está definido porque não tem critério urbanístico. É o critério da propriedade, é o critério da posse determinando o projeto de regularização. Isto está errado. Eu sou advogada, mas o que a gente defende é uma cidade com projeto urbanístico feito por urbanistas”.
DISPENSA DE INFRAESTRUTURA – Na REURB-S caberia ao Poder Público implementar a “infraestrutura essencial”, os equipamentos comunitários e as melhorias habitacionais, previstas nos planos de regularização, e arcar com o ônus de sua manutenção.
Os críticos da MP 759/2016 dizem que o conceito de “infraestrutura essencial” é vago demais, em contraponto ao conceito de “infraestrutura básica” para áreas de interesse social, previsto na Lei 6.766/1969 (que trata do parcelamento do uso do solo urbano), que consiste, no mínimo, de vias de circulação, escoamento de águas pluviais, rede para o abastecimento de água potável e soluções para o esgotamento sanitário e para a energia elétrica domiciliar.
Pela MP 759/2016 existe a possibilidade do loteador, em poucas horas, obter a aprovação municipal de um loteamento sem infraestrutura, levar ao cartório e tirar o registro. “É uma maravilha para o loteador e para o prefeito. Qual é o prefeito que não quer titular? Eu dou o título, mas a infraestrutura quem vai fazer é o próximo prefeito. Só que o próximo prefeito não vai fazer porque não tem dinheiro. Não é só um problema legislativo, mas de Executivo. Quem vai fazer a infraestrutura da favela que eu regularizei sem água e sem luz e que a água sai rasgando todos os lotes? O que vai acontecer é a consolidação de áreas de risco existentes e geração de outras novas. Isto não podemos permitir porque estamos diante da favelização dos municípios, em prejuízo da qualidade da fruição da cidade e da qualidade de vida dos moradores” (Rosane Tierno).
EXTINÇÃO DAS ZEIS – A MP 759/2016 extingue, sem nada propor no lugar, o conceito de ZEIS (Zonas Especiais de Interesse Social), incluído desde a década de 1980 nos Planos Diretores municipais, e consagrado no Estatuto da Cidade.
O instrumento é fundamental para garantir a inclusão de áreas para habitação para população de baixa renda no zoneamento das cidades.
FLEXIBILIZAÇÃO DA DESAFETAÇÃO – Hoje, a desafetação de um “bem domicial”, como uma área comum do povo (por exemplo, uma rua), ou imóveis públicos, só pode ser feita com autorização da Câmara Municipal. Só com a desafetação um bem domicial pode ser alienado. A MP 759/2016, no entanto, abre mão do ato nas áreas de regularização fundiária urbana.
Para os críticos, a dispensa de crivo legislativo para desafetações, facilitaria a privatização dos espaços públicos existentes, e exigidos por lei, nos condomínios fechados. “É a abertura ao interesse privado de todas as áreas públicas, sem critérios de ocupação que não os da tolerância total”, diz Rosane Tierno.
DEMARCAÇÃO URBANÍSTICA x LEGITIMAÇÃO FUNDIÁRIA – A MP 759/2016 extingue a demarcação urbanística, instrumento urbanístico previsto no Estatuto da Cidade que prevê quatro fases para a regularização fundiária de uma determinado assentamento.
A primeira tem o nome do próprio procedimento. Garantido o amplo contraditório por meio de notificação aos proprietários, União, Estado e Municípios, e confrontantes, com prazos para impugnação, é aberta uma matrícula única para a área do assentamento. O perímetro é definido por meio de critérios técnicos urbanísticos.
A segunda fase é o licenciamento do projeto de regularização. É nessa etapa se elabora o projeto de urbanização da gleba, com detalhes como percentuais de áreas destinadas ao uso público e tamanhos de lotes, bem como parâmetros edilícios.
A terceira é o registro do projeto e do auto de demarcação urbanística, quando ocorre a geração das matrículas individuais para os lotes. Por fim, ocorre a titulação por legitimação de posse, cinco anos após a conversão em propriedade.
Com a MP 759/2016 salta-se direto para a etapa da legitimação fundiária, sem a necessidade da urbanização e da implantação da infraestrutura. Segundo a MP, a legitimação teria caráter excepcional e, assim, somente seria aplicável aos núcleos urbanos informais consolidados, ou seja, àqueles existentes na data de publicação da 759/2016.
Segundo os críticos, a MP 759/2016 segue a lógica da regularização exclusivamente do ponto de vista dominial sem trazer melhores condições para a população que está residindo em áreas que precisam ser urbanizadas e passar por um processo de implantação de infraestrutura. “Ou seja, a MP traz a possibilidade dessas áreas serem tituladas sem que a população seja beneficiada por essas intervenções públicas”, diz Fernanda Costa, coordenadora regional do Nordeste do IBDU.
Alguns alertam também para o aspecto discricionário da legitimação, pois a MP não deixa claro os critérios para caracterizar o interesse público das glebas envolvidas. Há também quem entenda que a legitimação, feita nos moldes propostos pela MP, camuflaria uma espécie de “usucapião”, portanto seria inconstitucional.
DIREITO REAL DE LAJE – A MP 759/2017 propõe a criação do direito real de laje, “em reforço ao propósito de adequação do Direito à realidade brasileira, marcada pela profusão de edificações sobrepostas”. Por meio dele será possível se instituir unidade imobiliária autônoma, inclusive para registro, no espaço superior ou no subsolo de terrenos públicos ou privados, desde que esta apresente acesso exclusivo. Segundo a justificativa da MP, “trata-se de mecanismo eficiente para a regularização fundiária de favelas”.
Para os críticos, a proposta não atenta para implicações como a necessidade legislação municipal para tratar do tema, a falta de exigência de um responsável técnico, o licenciamento e o habite-se. Só depois dessas fases é que viriam a averbação da construção, a constituição do direito de laje e as matrículas autônomas das lajes, ações que a MP coloca na frente de tudo. Além disso, a 759/2016 prescinde da regularização do assentamento onde o lote está inserido.
Outro aspecto que exige solução técnica, não apenas jurídica, é a questão da garantia de acesso às áreas comuns como passagens internas ou escadas externas.
ISENÇÃO DE IMPOSTOS – A MP 759/2016 também prevê a isenção de impostos municipais como o IPTU (Imposto Predial e Territorial Urbano) e o ITBI (Imposto de Transmissão de Bens Imóveis) nas ações de legitimação fundiária, iniciativa que só os Municípios podem tomar, inclusive porque devem obedecer a condições estabelecidas pela Lei de Responsabilidade Fiscal.
Saiba mais
“Carta ao Brasil: MP 759/2016 – A desconstrução da Regularização Fundiária no Brasil” lançada em 08/02/17 assinada por mais de 90 entidades
Entidades denunciam inconstitucionalidade da MP da regularização urbana
Tudo sobre a Medida Provisória da Regularização Fundiária Urbana
Fonte: CAU/BR